Dia da Mulher
Questões de gênero influenciam a formação cidadã de trabalhadoras e trabalhadores?
Orientados por essa questão, servidores do IFRN desenvolvem pesquisa em três Institutos Federais
Publicada em 11/03/2020 ― Atualizada em 30 de Março de 2023 às 00:24

Ao perceber situações em sala de aula em que questões relacionadas a gênero e sexualidade acabavam interferindo, de alguma maneira, na formação educacional, um grupo de servidores da educação percebeu a necessidade de realizar uma pesquisa. Submeteu então o projeto “Corpo, gênero e sexualidade na Educação Profissional: cenários epistemológicos e subjetivos” à seleção do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Coordenado pelo professor de Filosofia Avelino Neto, do Campus Canguaretama do IFRN, o projeto de pesquisa reúne pesquisadores de seis instituições diferentes, do Brasil e da França, e foi aprovado para execução durante o período de 2019 a 2021. Para entender melhor o cenário que gerou a pesquisa, confira abaixo a entrevista concedida pelo coordenador à Assessoria de Comunicação Social e Eventos da Reitoria (ASCE).
ASCE: De onde partiu a motivação para realizar a pesquisa?
Avelino Neto: A partir de nosso cotidiano docente, e em conversas com as servidoras da Equipe Técnico Pedagógica (ETEP), da Assistência Estudantil e professores, em vários IFs brasileiros, notamos uma quantidade significativa de alunos apresentando queixas relativas à depressão, automutilação e tentativas de suicídio. Não raro, essas situações estavam associadas a distintos contextos de violência física e simbólica, alimentados pelo machismo, pela misoginia e pela LGBTfobia. Por causa do caráter íntimo e delicado dessa experiência, mas também pelo silenciamento operado pelas dinâmicas do preconceito, muitas vezes elas ficam invisibilizadas, manifestando-se no processo de ensino-aprendizagem por meio do rendimento insuficiente, por exemplo. Nós nos propusemos a investigar esse problema para compreender melhor os seus meandros e construir uma prática pedagógica capaz de enxergar essas situações e trabalhá-las adequadamente, tendo como parâmetro a formação humana integral postulada pela Educação Profissional.
ASCE: Qual a metodologia da pesquisa? Quem e de que forma vocês investigam?
Avelino Neto: A pesquisa é de abordagem qualitativa. Os dados são construídos a partir de análise de diferentes suportes discursivos (documentos e imagens) e de entrevistas semiestruturadas. Os participantes destas últimas serão selecionados a partir da identificação de queixas cadastradas pelas psicólogas no SUAP. Formamos uma amostra a partir de três tipos de queixas: autoestima (envolvendo aspectos relacionados ao corpo), abuso/violência e questões relativas à sexualidade. Serão entrevistados estudantes (homens e mulheres) maiores de idade que, em conversa com as psicólogas colaboradoras do projeto, se disponibilizem voluntariamente a participar da investigação. As entrevistas serão aplicadas em três IFs – Rio Grande do Norte, Pará e Pernambuco – e por estudantes de Iniciação Científica, especialização e mestrado dessas instituições (PPGEP/IFRN, PPGEd/UFRN e ProfEPT/Rede Federal), que irão produzir seus trabalhos a partir desses resultados.
ASCE: Por que é importante falar sobre gênero e sexualidade relacionados à formação escolar do cidadão?
Avelino Neto: O que está em xeque é a cidadania plena e o direito constitucional à educação, que é atacado quando os sujeitos não têm condições adequadas, sejam elas objetivas ou subjetivas, para o gozo desse direito. Trazer à tona essas questões no contexto escolar, notadamente na Educação Profissional, é um imperativo moral que visa por um lado, escutar e acolher os discentes em sofrimento – o qual está diretamente relacionado à permanência ou não na escola – e, por outro lado, sensibilizar os servidores para essas situações.
ASCE: Existem casos que você possa citar a fim de exemplificar as situações de sofrimento vinculadas às questões de gênero e sexualidade em ambiente escolar?
Avelino Neto: É muito comum, nas aulas de Educação Física, principalmente as meninas, terem vergonha de usar o traje de banho para as aulas na piscina, por exemplo, pois se acham gordas ou feias. Com uma certa frequência, esse comportamento vincula-se a distúrbios na imagem corporal, provocados também pelos padrões de beleza impostos sobretudo às mulheres. Lembro-me, especificamente, de algo que ocorreu no fim do ano passado. Em um trabalho na disciplina de Artes, sob a orientação do prof. Nilton Xavier, vários alunos do Campus Canguaretama produziram cartazes nos quais experiências com o insulto e a injúria direcionados a estudantes LGBTI+, o julgamento sobre o corpo feminino e a imposição de padrões apareceram fortemente.
ASCE: A pesquisa apresenta saídas para os profissionais de educação que lidam com essas questões? Por exemplo, o que pode fazer um professor, assistente social ou psicólogo que perceba quando uma situação de sofrimento dessas está acontecendo.
Avelino Neto: Após a finalização da investigação, pretendemos oferecer ferramentas para os diversos servidores poderem lidar do melhor modo possível com essas demandas. Temos a intenção de elaborar dois produtos: uma cartilha e um documentário. No entanto, hoje, o que poderíamos dizer aos colegas é que estejam disponíveis para escutar os alunos. Muito frequentemente, a identificação conosco – professores e técnicos – cria um vínculo de amparo que não existe em seus ambientes familiares ou entre os amigos. É no IF que eles se sentem livres para dizer o que sentem, sem medo, e para ser quem desejam ser.
ASCE: Em relação à mulher, seu corpo, suas vivências, seus espaços de atuação, o que a pesquisa apresenta?
Avelino Neto: A pesquisa começa a diagnosticar situações vividas cotidianamente por muitas mulheres: assédios e violências nos diferentes espaços frequentados por essas alunas (família, escola, igrejas, grupos de amigos). O que nos interessa compreender, porém, é como nós, enquanto instituição de Educação Profissional, temos respondido (ou não) a essas situações. Por enquanto, notamos uma mobilização difusa das meninas em diversos campi, articulando-se em coletivos e/ou outros grupos de discussão. Como ainda não realizamos as entrevistas, não temos dados mais precisos sobre essa dimensão. Essas informações fornecidas anteriormente provêm de nossas observações e entrevistas exploratórias com pesquisadoras, assistentes sociais e docentes.
ASCE: Em que estágio está a pesquisa? Quais resultados já alcançou?
Avelino Neto: A pesquisa está iniciando o segundo ano. Até agora, realizamos o estado da arte, toda a revisão bibliográfica e a aproximação com os setores de Assistência Estudantil, com vistas a selecionarmos potenciais participantes. Atualmente, estamos esperando o julgamento do Comitê de Ética em Pesquisa para podermos dar início às entrevistas.
De todo modo, o que notamos ao explorar o campo de pesquisa é que nós não conseguimos receber adequadamente toda a demanda de sofrimento dos alunos. Nossa relação com a saúde ainda é estereotipada: atribuímos a responsabilidade do cuidado com o bem-estar psíquico desses jovens única e exclusivamente ao Serviço de Psicologia. No entanto, o que também notamos é que, também por causa disso, essas servidoras têm uma enorme sobrecarga de trabalho, impedindo-as muitas vezes de acolher essas situações do modo mais adequado. O que começamos a vislumbrar é a necessidade de criarmos uma rede de acolhida e escuta do mal-estar em nossas instituições, e isso passa por todos os setores, não apenas pelo Serviço de Psicologia.
Repercussão:
Com base nessas temáticas, cinco dissertações de mestrado encontram-se em andamento no Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional (PPGEP) do IFRN e no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) da UFRN. Três Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) de especialização em Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Contexto da Diversidade foram defendidos e dois TCCs de graduação da Licenciatura em Educação do Campo estão em andamento, no Campus Canguaretama do IFRN.
O PPGEP-IFRN e o PPGED-UFRN receberam a visita do professor Jacques Gleyse (Universidade de Montpellier/França), em maio de 2019, e da professora Julie Thomas (Universidade Jean Monnet - Saint Étienne/França), em agosto de 2019, participando de atividades do projeto e ministrando disciplinas. O grupo de pesquisadores organizou ainda a I Jornada Norte-Nordeste de Gênero e Sexualidade na Educação Profissional, no IFPA, Campus Belém, em novembro de 2019, e a Conferência: "Políticas do corpo: sexualidades dissidentes na Educação Profissional e Tecnológica" (com Natália Cavalcanti/IFPA), no Campus Natal-Central do IFRN, em dezembro do mesmo ano.
Além disso, foi organizada a coletânea "Corpo, gênero e sexualidade na Educação Profissional brasileira e francesa", co-organizada por Jacques Gleyse (Universidade de Montpellier/França), Julie Thomas (Universidade Jean Monnet - Saint Étienne/França), Avelino A. de Lima Neto (PPGEP/IFRN) e Ilane Cavalcante (PPGEP/IFRN), com previsão de publicação bilíngue (português/francês) para julho de 2020 pela Editora L'Harmattan (Paris).
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