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Dia de Estudante

Estudar para resgatar a ancestralidade e reconstruir a sua história

Para Meyriane Costa, educação é voo entre saberes indígenas e licenciatura

Publicada em 10/08/2020 Atualizada há 1 ano

Meyriane Costa Oliveira mora na Comunidade Indígena Catu dos Eleotérios e sabe exatamente o dia em que iniciou o curso de Licenciatura em Educação do Campo (Ledoc) no Campus Canguaretama do IFRN: 26 de abril de 2017. “Um dos melhores dias que eu tive na minha vida, estudando. Para mim, ser estudante é uma libertação. Voltar a estudar é como voar”.

Ela tem 40 anos e fala com orgulho da sua trajetória estudantil, reiniciada no Instituto. Meyriane trabalhava em uma loja de material de construção no bairro de Ponta Negra, em Natal, quando despertou para a sua ancestralidade indígena. O encontro gerou a primeira mudança: foi morar no Catu. “Sabia que eu era diferente, mas não sabia o que era. Fui desafiada pelo cacique Luiz Katu a descobrir minhas origens. Eu precisava fazer o caminho de volta”, explica.

Meyriane não se desligou do seu pai nem da sua mãe biológica, mas no Catu encontrou mais uma família. Sua mãe adotiva faz beiju e ela artesanato, tudo com base na tradição indígena. Foi em uma visita de pesquisa que o professor Flávio Ferreira, hoje diretor geral do Campus e orientador da estudante, convidou para que ela expusesse os seus produtos nos eventos do IFRN. Ali a vida estudantil de Meyriane começava a ser reconstruída.

O RESGATE

“Eu ficava observando, achava bonito e ficava pensando se eu ia voltar a estudar. Foi num evento sobre formação de professores que Socorro Silva e José Mateus (também do IFRN) me apresentaram o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Diversidade (NEGeDI). Em 2015, eu comecei a participar das reuniões do NEGeDI com as mulheres do Catu. Eu fui sentindo aquela sede, aquela vontade de ter mais conhecimento. Eu tinha medo porque não conhecia as palavras que eles falavam. Eu ia e perguntava a Flávio. Ele vinha comprar beiju aqui na minha mãe”, narrou, destacando também a importância das professoras Clarissa Andrade e Monick Munai para a sua vida estudantil. "Eles também são amigos. Ser professor é muito mais do que ser professor, muito mais!", enfatiza.

Meyriane afirma que o Campus Canguaretama é diferenciado. “As pessoas se abraçam, olham você nos olhos. Os professores são maravilhosos, são muito humanos, sempre se preocupam com o que fazer para melhorar a vida dos estudantes, para incluir. Eu transmito tudo isso para o coletivo indígena”, comemora a professora em formação.

O encontro com o NEGeDI despertou mais sede por conhecimento. Depois disso ela começou a fazer o curso de Agricultura Familiar do Programa Mulheres Mil (cursos de Extensão voltados para promover a autonomia de mulheres em vulnerabilidade social). “O Mulheres Mil foi um aporte, um chamado. Eu pensava: Meu Deus, eu estou dentro dessa Instituição, eu posso voltar a estudar. O Mulheres Mil e o NEGeDI foram meus braços”, lembrou. Com o suporte desses braços, Meyriane não parou mais.

Decidiu fazer o ENEM em 2015 e tem orgulho da sua nota na redação: 840. Com o tema “Violência contra a mulher”, a estudante credita o desempenho ao NEGeDI: foi nas reuniões do Núcleo que aprendi sobre violência doméstica, machismo e cultura colonizadora. Eu não sabia que mulheres tão próximas de mim tinham sofrido com isso durante muitos anos porque eu não sabia o que era violência doméstica”, lembra.

A RECONSTRUÇÃO

Com a nota do ENEM ela se tornou a primeira estudante da Comunidade Catu na Licenciatura ofertada pelo Campus Canguaretama. Meyriane já era bolsista do Curso no Mulheres Mil, com a coordenação da professora Sandra Alves, hoje no Campus Ipanguaçu do IFRN. A estudante destaca como Sandra foi essencial para a sua formação e como a bolsa que recebia ajudava a se manter como estudante: “era como eu pagava o transporte para ir ao Campus. Às vezes perdia o ônibus e tinham umas 10 pessoas no Catu que se revezavam para ir me buscar no IF de noite, quando eu não tinha como voltar. Quando chovia, eu dormia na casa de uma amiga ou atravessava o rio me molhando mesmo”.

Hoje Meyriane recebe uma Bolsa Permanência do IFRN, que a auxilia a frequentar as aulas. Ela também fala com entusiasmo sobre a importância do cacique Luiz Katu: “ele explica sempre que a gente tem muitos direitos e que precisa conhecer. Pra gente se apropriar disso. Saúde, educação, respeito. Com o conhecimento e a internet que chegaram na comunidade as pessoas começaram a perceber seus direitos. A educação promove isso. A gente recebe das nossas lideranças, que são os transmissores desses saberes”.

Com a vivência no IFRN e no Catu, Meyriane também se tornou uma transmissora. Ainda no Instituto, antes do Ledoc, fez o Curso de Formação Inicial e Continuada (FIC) em Saberes Indígenas e passou a ser voluntária nas escolas da comunidade. No IFRN, ela valorizou o seu amor pela escrita e hoje tem um livro de poesias para publicar. Escreveu artigos científicos e começou o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre a educação na Praia do Sagi, onde fica a Comunidade Quilombola Sibaúma. “Já existe um trabalho lá que é sobre autoafirmação. O que aconteceu, as modificações, o que resiste. Gosto muito de lá porque é praia e eu sou potiguara, é minha raiz. Pai e mãe são pescadores”, orgulha-se.

Para Meyriane, falar sobre a sua raiz é se apropriar da sua história e se valorizar. “Eu sinto que é uma missão. Para não sofrer com o silenciamento”, acrescenta. A estudante, que começou a licenciatura próximo aos 40 anos, sabe que para aprender não existe idade. É a sede por conhecimento que a faz construir uma nova história, baseada nos ensinamentos do passado e do presente. Ela quer fazer mestrado e já sabe qual será a pesquisa.

“Não sou do tronco dos eleotérios. Um futuro trabalho que vou fazer é para narrar a origem do meu povo, da nascente do Pratagi. Como esse povo migrou da Paraíba. Sei que algumas pessoas da minha família não acreditam que são de origem indígena. Não acreditam, tem vergonha. Eu quero fazer um resgate. Eu quero poder registrar isso. É memória. Eu acho importante a educação para isso. A libertação para isso. Eu quero ajudar a minha mãe. Ter um meio de transporte para viajar com ela. Quando ela vai na Paraíba diz que é como se tivesse voltado no tempo. Ela gosta tanto que queria morar lá. Um parente lá vai fazer uma oca para mim”, comemora. E assim, com o conhecimento vivido na Comunidade Catu dos Eleotérios e no Campus Canguaretama do IFRN, Meyriane encontra material para reconstruir a sua história e a do seu povo.